Pensar Hoje - retratos do agora

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O cantil

Duas almas desalmadas nem aos céus podem recorrer; suas barracas também não são tão símbolos de segurança, tampouco o céu que teria em enganá-los. O peso é parco, a idéia de realidade já inexiste. Não há nada para buscar na barraca, só o som zunido do deserto consegue entrar em seus ouvidos, até nas almas desalmadas.

O mapa? Ainda nada diz. Consertar o carro só dá a esperança de encher o cantil mais uma vez. A direção só é decidida, não que seja certa. O passo parco só garante um erro menor: não se sabe onde estará o novo cantil. Mas o binóculo diz mais! Pena que ainda estamos longe.

Mas o cantil d'agora é importante, é importante. Tenhamos determinação, amanhã poderá ser melhor. É por lá, diz ele! E seguiremos, vamos seguir, não podemos perder mais tempo. Ou, mesmo que percamos, façamos algo para não pararmos. E não há discussão nessas horas: um está tão perdido quanto o outro e nenhum mapa diz nada, até as estrelas mentem para nós.

A escravatura ainda não acabou, digo. Temos duas barracas para nós dois, mas parece que só uma existe. Uma é igualzinha à outra, mas o sono em ambas é ruim, ruim de uma forma diferente. E ah, a do escravo só é mais iluminada porque ele precisa trabalhar.

Um mundo está longe, mas o nosso é menor: busquemos! E eu quero, também, o cantil. Mas calma, calma. Deverá passar tudo isso, espero. E quando isso tudo passar, deveremos rir do que aconteceu, ou então nos separarmos e irmos cada um para seu caminho. Mas de tanto tempo longe, não lembro qual é o caminho. Não temos mais história, qual o sentido?

Não quero, não quero matar! Sou ainda honesto, mesmo que o capataz sem causa continue aqui. Vamos seguindo. Mas o capataz não perdoa a nada. A saída não é justa, ela só servirá para ele. E os reprimidos? Que continuem escravos, ele acha. Se não podemos consertar o que tivemos, joguemo-nos fora. Sigamos, sigamos, sigamos a algo que não sabemos o que é: o cantil é importante.

Ele me deixou sem água. Fenecerá ele! E não é por vingança, não. É que ele se acostumou com água, a ele vai faltar, já estou acostumado sem: o corpo a tudo se adapta quando a alma é forte. E a mais um pesadelo não suportarei, se ele pensa que é esperto, ignorância plena: vou tomar um restinho de água aqui.

... e ele ainda consegue achar as estrelas bonitas! Não, não suporto. E agora a água acabou até para ele. Quero ver qual lápide o acolherá, porque agora será só ele a procurar sentido na vida! Porque a minha serão os grãos de areia que já correm pelas minhas mãos...

... baseado na peça O cantil do grupo Teatro Máquina no Centro Cultural São Paulo - texto escrito em 28/11/2008.

sábado, 11 de outubro de 2008

A gelatina pelo mundo

Não sabemos, mas o mundo nos é tudo e somos tudo ao mundo. Ele sem o significado, o mote, que somos nós, só é uma massa imberbe de terra. A sacanagem, a malícia, o bem e a ternura estão em nós, nós. E à terra a história só acontece com emoção.

Aqui também é um conceito relativo. Temos consciência, sim, de que não a temos de verdade. Ela é só um elo imaginário que não nos dista da matéria em que somos inseridos, a gelatina pode ser um bloco de pedra. E à ilusão damos os louros de nossas vitórias, eles são impuros tanto quanto nós, não precisamos sentir culpa.

Sem o cuidado devido, nossas piores coisas aparecem e o simples fato de querermos viajar pelo mundo pode nos parecer um dilema. Três pontinhos não conseguem, ainda, descrever um dilema por completo. Ele são os três pontinhos e a falta deles ao mesmo tempo.

Garçom, por favor, um café. Ele ainda é o que consegue um torpor cônscio, meu deus. E não tem gosto de gelatina, mas de terra. Vamos caminhar pela linha imaginária que traçamos quando viemos ao mundo, ainda faz bem isso. Cuspir palavras não deve ser crime também, só cuspir nelas.

E a conta, por favor. Vou pagá-la antes, é mais fácil.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O cipreste

Imponente, a mim é um milagre da criação: não há avenida menos chamativa quando vejo duas fileiras de meia dúzia deles. O vento o acaricia igualmente e ele corretamente o reverencia. Teve importância grande em minha criação, admito. Todos somos vento, passamos desapercebidos sempre que quisermos. Só que ele sempre nos notará, sempre tentará captar mais de nossa motivação.

E é ele, o motivo. Ele é o sopro, o motor. Nunca admitimos nadar contra, mas acontece a toda hora. Deixar ir é mais fácil que deixar se ir. Partir a si próprio admite duas interpretações. Ambas corretas porque deixar o recinto também é deixar um pouco de si para trás.

Claro, alguém o plantou. E sim, é verdade, sofrerá com as ervas daninhas, os fungos, os lenhadores. Ainda é requisito, para quem quiser desvendar os céus, vencer a terra. Ao menos por aqui, onde quem manda é ela, alimentando a raiz; os céus, o cimo.

Quando pensamos ser ou ter asas, devemos lembrar que elas nos fazem algo entre planar vagarosamente ou rasgar os céus: geralmente só recordamos a liberdade implicada. Ela nos deixa com a escolha de admirar a paisagem ou lá chegar. A verdade é que ninguém sabe exatamente onde é lá. Então muitos resolvem admirar a paisagem.

Um cipreste não sai de seu lugar, mas a única referência que seu cimo tem é o vento. Ele pode escolher entre permanecer parado a contemplar o vento e permanecer em movimento vendo o vento passar. E a razão dele estar sempre verde é que ele, nessa avenida, viaja pelo mundo com seus onze companheiros.

domingo, 13 de julho de 2008

Estática

Pode também ser revigorante andar parado; assim o diz meu corpo hoje, ao pela primeira vez sentir o farfalhar das folhas, sim, lá ao longe - longe do que? - sem se preocupar com as qualidades ou defeitos dele. Também pode ser boa a sensação de não julgar, não ser julgado - sequer olhar por um tempo.

O descanso, quando de verdade, pode ser confundido com algo não benigno. Mas, oras, depende de como medimos isto. Afinal, pomo-nos em condição da justa incapacidade para aferir algo. Felizmente é só por um tempo.

E, então, como não confundir o descansar com o apodrecer, nestes casos? Nele, assim como o fiz, ser medido após tal descanso ou padecimento. Sim, demoramo-nos a entrar de volta em nossos corpos, mas eles também agradecem quando é um descanso. Um decanto, diria.

A fugacidade deste momento nos é cara: como evitar fugir se simplesmente estamos fora? Não há resposta necessariamente precisa, até assim não podemos evitar nossos corpos de pensar ou até de tomar decisões por nós. Aliás, "por nós", saliento.

Cabe a nós decidirmos por quanto tempo ficaremos estáticos. Se pouco ou se muito, o julgamento é pessoal. Mas há um consenso. Ninguém descansa sem ter se cansado de algo. Como quase tudo, é talvez melhor que não seja para sempre. Ou muito.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Olhos fechados

(erros: ^H é o backspace para correção)

É com alegria que escrevo de olhos fechados. É parte de uma cena tudo isso. Ouvir música e, ainda de olhos fechados, escrever, me é gratificante. Há a especialidade de se sentir, ainda, a melodia no peito, com tanto o ribombar o movimento mais agressivo quanto o adágio a me acalentar.

Compor de olhos fechados deve ser difícil, uns dizem. Devo concordar, escrever também o é. Mas quando as palavras saem do coração, não sei, é mais possível chorar palavras sem se arrepender. Não temos nossa blindagem e queremos sentir um pouco mais para refletir por que é que é tão forte...

Não tem dilema nisso, aposto. E o melhor, não preciso de meus óculos para enxergar melhor o que escrevo.

A orquestra estava bonita, na música cada instrumento passava a batuta ao outro: violinos fazendo a vez de trompetes, até triângulos tiveram chance de se mostrar. É porque eles devem ser a forma perfeita, acredito.

Sem ver, uns podem perder a linearidade do que escrevem. O que é que escrevi há dois parágrafos mesmo? Não tenho como reler e tentar dar mais sentido a algo. Mas estava tudo em minha mente, deve fazer sentido. Vamos para a próxima palavra, o resto deve fazer sentido.

Olhos fechados devem combinar com breu, acredito. Mas sem barulho, por favor. Sem ruído. Sem interrupções, depois penso no que passou. Ou não. Devo confundir as coisas agora, não tenho esse costume (de escrever com olhos fechados).

Voltando à música, o resultado deve ser bom se a sensação no coração ainda é a mesma quando terminar de escrever. Porque se escrevemos alguma coisa com uma sensação no coração e, ao final do texto, el^H^H^H ela mudar,^H é porque algo deve ter mudado no meio do caminho. E só de olhos fechados para ainda ao mesmo tempo olhar para dentro e tentar continuar igual dentro como fora.

Ainda escreverei com música um dia. E, claro, de olhos fechados.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Dilema

...

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Viajando

É oportunidade para mudar o porto. De viagem, os nômades nos contam um pouco. Para viver a viagem, é preciso saber que há a chance de nada mais ser o mesmo. Sem casa, o porto pode ser qualquer coisa ou pessoa. As luzes da cidade ganham significado, talvez até sejam vida.

Sim, somos tudo o que vemos, mas mais ainda o que sentimos. Saudades só acontecem de verdade quando se viaja para longe. Ou, ainda mais, quando algo ou alguém parte. Partir também é quebrar, deve ser isso. Temos várias respostas já dentro do vocabulário, é vocação natural do dizer.

Como será criar novas raízes quando não desapareceram as antigas? Pergunto-me em meio a tudo o que acontece, a árvore só tem um tronco normalmente. Há sementes que nascem fora da terra, mas esse é o porto. E não há eleição, simplesmente acontece.

E viver, o viver de vida, é importante: a criança, num passeio, verdadeiramente viaja; ela conhece todo o mundo fantástico. É que ele nos é apresentado bem cedo, daí uns esquecem-se dele e outros não. É curioso, uns florescem-se nele e outros apossam-se de tudo o que estiver perto porque não é suficiente.

É que quando somos pequenininhos, o mundo é muito. E ao crescer, parece que ele diminui. É só sensação, tudo é do mesmo tamanho. Aí, se não é suficiente, foi a vontade de querer tudo que aumentou demais. Afinal, se um quarto é um mundo, por que anos depois ele deixa de ser grande?

Verdade, a grandiosidade nos é tentadora. Mas só é mais fascinante que ela saiba que somos pequenos. Não ter espelho faz pensar que é preciso ser maior para ver algo menor. Muito na vida é ilusão, talvez ser pequeno também a seja. Mas não condeno a ilusão, ela também pode ajudar alguém a crescer.

Volto a dizer: o mundo fantástico é o único que nos deixa para fora da redoma de vidro. Sem tal paisagem, já não somos mais crianças, talvez tornemo-nos assim objetos! A criação já não nos é vertigem se formos pequenos. Somos chance de um sonho, não é à toa que dizem: a cada vez que alguém cresce, uma fadinha morre.

E a viagem tem tudo a dizer. Ela sempre vai perguntar se o chá terá torrões de açúcar, qual a carta favorita do baralho, se a ciranda já acabou. Tudo para a viagem ser a mais completa. Não pergunto, mais, se a viagem roubará um pedaço da minha realidade.

domingo, 6 de abril de 2008

O azul da menina

E eu não sei. Foi bonito ver aquele azul, tão próprio, derramado sobre tudo o que ela chorava. Como se o azul fosse terminar, sabe? Depois de tudo passar e ela lembrar que ele também saía de seu sorriso, percebeu que a cor era um pedaço dela.

Parecia fulminante, dava para perceber a cena tornando-se azul com o cair das lágrimas. O cinema pausou-se quando ela resolveu fechar os olhos e sonhar, tornar-se aquilo que não sabia em que iria se transformar. A casa ficou mais vermelha quando isso aconteceu, o telhado só queria sorrir.

Tudo tornou-se diferente dali em diante, o choro tinha filtrado tudo de ruim que havia no coração - este resolveu bater mais comedidamente, assim como outras vezes que isso acontecia no prédio e as crianças ficavam quietas, como se escutassem o que acontecia.

Enquanto isso uma mãe, dela muito amiga, resolveu subir e perguntar o que tinha acontecido - a filha misteriosamente resolveu dizer sua primeira palavra, e não era "papai" ou "mamãe", era "titia". Como a única titia poderia ser ela, subiu. Subiu já lembrando que as crianças sabem muito mais que os adultos.

Lá, está ela azul, já enxugando suas lágrimas. Ao entrar em contato com elas, entendeu tudo o que se passava em sua vida - ninguém precisava saber. Deitou-lhe no colo e logo a menina começou a ter outros tons, pastéis, dessa vez de um alívio verde oliva como nunca. O azul também ficou bem pastel, alegre, forte.

Ela só precisava de um pouco de carinho de verdade.

Cuidemos de quem nos ama, este pode ficar sem cores. Se não tiver mais cores para alimentar a alma, ela resolve perder também o pretume. E daí, ao desaparecer, não haverá mais nada a ser cuidado.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Filosofia da caixa preta

Imagens têm capacidade intrínseca para profunda representação, ainda que ao mesmo tempo apresentem características superficiais à primeira vista. Elas e percepções de seus conceitos não devem restringir a interpretação do registrado, potencializando a busca pelo real sentido de fotografar e assistir a uma fotografia. Ao buscá-lo, tanto o emissor fotógrafo e o receptor espectador devem ter bagagens compatíveis para tanto captar determinado ponto de vista quanto guardar sua imagem de forma adequada.

Como qualquer objeto, sem qualificação e/ou interpretação películas são desprovidas de valor. Ao permitir a construção da crítica na mente do observador, este terá maior capacidade para detectar a significação imbuída em cada seqüência de imagens – tendo tal significação uma relação direta com a especialidade dada às películas pelos veículos, devendo eles tratar imagens evitando desprovê-las de significado.

Na fenomenologia de Merleau-Ponty, a frase “o verdadeiro Cogito não substitui o próprio mundo pela significação mundo” pode ser utilizada para a fotografia onde a diferenciação entre imagem, película e fotografia é necessária. Sendo assim, a imagem é o produto final da representação feita pela fotografia tendo uma pós produção. A fotografia é o processo para a representação de uma imagem e assim requer um agente ativo para sua realização, e a película é simplesmente um meio para a armazenagem de determinada imagem.

Ganha mais corpo, especialmente pelas películas serem formas para registro atual do que será revisto futuramente, a atemporalidade das mesmas. Mais que palavras ou textos noticiando algo em determinado momento, capturam conceitos do passado em que o observador terá oportunidades para viver ou reviver tais contextos registrados.

Estes devem, não substituindo raciocínios lógicos baseados nos fatos noticiados, envolver possíveis regionalidades culturais a fim de, além de disseminar acontecimentos, informar quais são, qualitativamente, os aspectos com relação à cultura, local ou não, prendido na imagem.

Tornando-se elementos primários, imagens representam também ligações dos fatos e acontecimentos com o ser humano, explicando-lhe qual a sua pertinência em tal universo. Ao amealhar o conceito de pertencimento, é necessária a sabedoria para não influenciar os observadores a um determinado ponto de vista, sob risco de ceifar-lhes a capacidade de interpretação segundo sua cultura, ou serem influenciados a somente enxergar sob vis subterfúgios o que será necessário noticiar.

Como a imprensa, a prensa de películas também não pertence a um universo objetivo, imparcial; faz-se necessário tal reconhecimento para os portadores da informação evitarem a manipulação vil da mesma, lembrando que cada gesto cometido ao fotografar é esforço para capturar, em menor espaço possível, a maior ou melhor representação da imagem da realidade possível, lembrando que ela nunca será absoluta, adaptando a produção ao meio no qual será difundida tal representação.

Imagens e suas diversas representações somente tomarão força ideal na realidade se o caminho à fotografia trilhado tiver duas vias: a do compreendimento à necessidade de, o mais possível, representar o mundo e sua intrínseca complexidade, e a do desenvolvimento ao privilégio de captar e simplificar tal mundo à linguagem da mente.

terça-feira, 4 de março de 2008

Homem-pássaro

Renasce, a cada dia, o Homem-pássaro que há em nós todos. Claro, este não tem exatamente um gênero. Talvez nem seja “suficiente” para os outros anunciarem que tem essência. De luz, sim, ele vive. E dói lembrar, tem gente fazendo questão de matá-lo todos os dias.

Não faz mal, ainda assim ele fala. E diz muito, viu? Esta parte ou este todo está em cada um de todos. Temos a capacidade de renascer todo dia, por isso ele sobrevive mesmo com as pessoas o matando.

Também não faz mal morrer um pouquinho; se ninguém morresse, não teríamos coisas novas, juventude, coisas a criar. E toda nossa cria é nossa responsabilidade. Ai de quem não entende isso. Não faz mal, no fim todo mundo entende.

Mas também não faz bem nascer todos os dias. Olhar pela janela e estranhar a paisagem, perguntar o-que-vamos-fazer-hoje e não ter resposta, não saber o porquê de ter levantado hoje... Que hoje?

Ou morrer todos os dias. Como vamos morrer hoje? Por que? Mas já? É, estranho também. Tudo é estranho, é viscoso, tem cheiro de caramelo vencido, o olhar é sinistro ao irmos embora.

E suas penas douradas não passam desapercebidas, não, não. Rinasce più gloriosa, já diziam. Tal ressureição é dona do berço de nossos bebês morais e da lápide de nossos preconceitos. Quem não mudou um pouquinho hoje?

Faz sentido falar em reforma, que a luz nos guia, o céu é seu viveiro. Por isso o sol a todo dia vem, tal qual a roda da fortuna. E a lua, essência da roda, sempre cresce e mingua. Não tem quem não mude, só isso. Uns demoram, é claro, por teimosia. Como já disse, por dentro a alma só ri se ela quiser.

Por isso a vida muda as perguntas a toda hora, é mesmo! E por isso também devemos morrer ou nascer, não? Para entender, só se perguntando hoje e amanhã. Se a resposta for diferente, algo mudou.

Só não devemos ter vergonha de ter outra resposta amanhã, ela pode ser melhor que a de antes. Deixemos ele voar...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Um café

Por favor, sim, descafeinado. É que é como hoje preciso me sentir. Desapegado à própria essência. Estranho a mim mesmo. Não sei o que faço aqui, em pé, à entrada da cafeteria. Agora as razões estão, a mim, veladas – e hei de descobri-las!

Não há razão.

Em terreno tão definido, resoluto, é impossível encontrar respostas dentro de nós próprios. É mesmo? Hoje, o termo, é inexistente. Enquanto o café esfria, sinto a espuma arrefecer e a ganhar tom. Sem razão para em qualquer coisa pensar, tomo ele – sim, simplesmente tomo –, este agora sem parte de seu ser. Não tem hoje.

E o que existe de tão velado?

Deve, no café, existir um pouquinho de mim, pedi ele com bastante carinho. Quem o fez me conhece, sabe do que gosto. E é um dia especial, pois sempre gosto do puro. Do revelado. O aventureiro, até meio ácido de seu humor, também sensível. Tem um pouquinho disso nos meus olhos, não tem?

Ele é algo pessoal.

Nesse descobrimento de nós próprios, refletimos nosso cerne, ele (o descobrimento) é parte integrante da percepção, da dádiva de sabermos que somos parte do que tomamos e também tomamos parte do que somos. Exercitar a tarefa de apreciar nossa essência, defini-la com uma única cor e todos os tons que couberem na memória.

O pessoal é intransferível.

Às vezes as coisas são simplesmente nossas. E percebemos que não dá, não dá para repassar tudo aos outros. Assim acontece com o gosto que sentimos. Esperamos que seja um pouquinho de nós e um montão dos outros, até porque é bom saber como são os outros. Não sei como é você, talvez menos quanto sabe como sou eu.

Mas só eu sei como escrevo na borra.

Às vezes alguém resolve ler uma borra de café e dizer algumas coisas sobre nós. E elas estão até certas! Acertam com honra, valor, até orgulho. Mas o importante é outro, outro, o outro. Segredo esse ninguém tasca, pode ser meu motivo para viver. Se alguém achar uma pista, vai saber – não, de verdade, não tem segredo. Dessa janela ninguém vê o sol.

É que ninguém sabe como é a gente que entra pela porta de um café.

Sai da boca da razão que uns são e uns não são. Só que não tem boca para dizer como são, menos ainda os porquês de serem. Ou não serem, na verdade tanto faz. Para mim, tudo é um e, para o outro, um é tudo. E o que acaba importando é se o outro vai dizer oi ou não.

Oi, um café puro, por favor!

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Os homens não conhecem seus céus

Os homens não conhecem seus céus

Não é verdade. Sim, alguns conhecem o céu. Também aquele azul, o que contemplamos quando no parque – não quando corremos – ou quando prestando a rara atenção na janela. Os homens são solteiros, eu digo. Não casam-se com o que eles já, sim, sabem a que se refere a felicidade. É estranha essa coisa de felicidade, parece que estamos numa peça de teatro, que temos de rir a toda hora.

Espero ter lucidez agora. A reconhecedora do poço no qual nos encontramos: o da solidão, da ilusão do que é bom e ruim, das coisas que nós próprios fizemos conosco. Não tem nexo criar a noção de felicidade se nascemos chorando não-sei-o-porquê. Tinha mais alguma coisa azul, mas o tempo não deixou escrever. E não importa, algumas precisamos aprender sozinhos, assim como fizemos logo ao nascer.

Todos querem ser fortes, lúcidos, amorosos, calmos – querem. Descobri que eu também. Não sei dizer qual é o caminho para atingir o que queremos. Ninguém decide sem querer, mesmo que não tenha razão: é preciso querer. Mas tudo o que queria era deixar o sol entrar pela janela ou sair da casa para não precisar da dita janela. Meu pequeno universo começa quando vou dormir. Só assim sinto o que faria se tivesse decidido tudo na vida.

É para decidir bem aos pouquinhos. E então vamos dizer “Era uma vez”. Eu ainda não comecei. E quem decide resolve enxergar o mundo diferente: “Eu já fiz”. Mas sofre o amargor, começa a ter menos coisas a fazer na vida, a deixar de ser criancinha. A não dividir seus hábitos, não revelar o que sente. E dá calafrio nas costas pensar que alguém vai deixar de ser criança, que vai ser iniciado em algo que não sabe o que é.

Daí o cândido passa a ser responsável, respeitado, retorcido. Dizem que são mais fortes, mais felizes, mas não é, não é. É a amargura que se acumula para eles rirem da próxima piada, qualquer coisa vai ter graça se não for desgraça. E não terão muito a fazer a não ser continuar vivendo. E por dentro a alma só ri se ela quiser.

Queria tanto saber por um dia como é. Mas não dá, não dá. Se acontecer, vai me tomar o riso e me tornar irriso. Irriso de irrisório, ilusório. E não tem volta, a experiência preenche todas as suas lacunas. Quando temos muitas delas conseguimos ouvir e desouvir porque tudo por elas passa. Quando não, tudo entope a alma como o coração magoado. E esse mata, mesmo que não literalmente.

E a decisão é clara como o céu, mas outro céu. Mais outro. Esse é o de dentro, o que enxergamos quando ficamos cegos, isolados do mundo. Tem coisas que são apenas nós. E esse nós são eu e eu. As que entram pelas frestas das janelas, que nos cegam, não deixam que vejamos nada mais porque essa, sim, é uma certeza: o mundo dos átomos é muito pequeno para isso, são só cinzas. Ou são cinzas, mas não essas que conhecemos. As que invisivelmente saem quando queimamos alguém e enxergamos sua vontade de viver no ar. A essência, dizem. São só cinzas, também, porque muitas vezes não nos importamos conosco.

E ao transferirmos coisas para a responsabilidade de outros é que erramos. Não, não, não, eles não são responsáveis por nós: nós é que devemos tomar cuidado do eu. E a isso não adianta bater a cauda, queimar o jardim. Esse jardim ninguém queima: ele só enfeia ou embonitece. Seu pensamento não arredará pé e, sim, ele é quem está certo! Quando descobrimos tais certezas, o jardim cheira bem, novamente cândido e incólume – protegido da cólera que plantamos ao ver o jardim dos outros quando precisamos mesmo é cuidar do nosso.

O mais estranho disso tudo é descobrir que o céu não está no nosso jardim nem no dos outros. Todos temos o direito de ver a paisagem, igualzinho ao do vizinho: ninguém pode ter um pedaço maior do céu que o outro. Acontece que alguns aproveitam-no melhor que os outros. Há quem fique feliz na clausura! E eu pensando em janelas. Há os que dormem em quartos escuros, movediços, até traiçoeiros. E, ainda assim, dizem ser donos de quinhões no céu. Como pode? Ah, é: não precisa explicar.

Eu o amava, o céu. Porque ele não precisa de passaporte, dinheiro, sequer sonho! Era só estar lá e andar. A cada vez que eu entendia algo mais aqui, meus passos nos céus se alargavam. Até que eu resolvi livrar-me de tudo aquilo que não precisava ou não queria de verdade mas os outros insistiam. Então eu passei a voar, passar por nuvens, espiar nas casas – sim, lá as casas são perfeitas – e encontrei um espelho. Nele eu era outra pessoa. Virei um dragão!

Um dragão. O que as pessoas dizem ser sujo, malcriado, o que solta fogo e assusta as crianças em seus sonhos. Mas como assim, sempre gostei de crianças! E comecei a cair quando pensei nos outros, ah, os outros. E esquecia como era voar. Voltei ao estado estupefato para não me esborrachar. Parei numa pedra para refletir. Fria, ela. E tinha limo verde, quase escorregava. E ali tive de decidir se voava para sempre ou continuava pela terra.

Sempre soube que os passos largos me levariam a uma dura decisão. E hoje chegou. Não posso andar e voar; correr cansa. É a responsabilidade, agora, de saber se serei criança ou “gente grande”, se vou voar ou andar, de tudo. Sinto que sentirei falta da outra opção. Andar não dói, mas cheira mal. Vejo o mal. Cresce, aparece, é café derramado. Voar é puro, cândido, leve, mas dói. E não sentimos cheiro, ele fica para trás. E ao não cheirar não crescemos, continuamos crianças.

E o tema entra e sai de minha cabeça a cada segundo, é luz na peneira que faz suco de laranja e vodca que queima a garganta. Mais café, eu pedia. Resolvi que não iria pensar até os próximos cinco segundos, a resposta viria. Também resolvi roer unha feito criança, ainda na ansiedade de crescer para saber se iria voar ou andar. Respirei parcamente, até esbugalhei os olhos e fiz caretas com a boca para clamar alguma resposta do cérebro, porque eu já sabia o que o coração queria.

Sem piscar os olhos minhas mãos tremeram e eu esqueci quem era. O adágio ribombava na minha cabeça porque agora seria o momento de virar as costas para metade de minha vida e decidir se seria um transeunte ou um avião aos olhos de quem passa o tempo contemplando a paisagem. Se teria alegrias comuns ou mitológicas com hábitos coletivos ou solitários ou qualquer coisa que o valha. Percebi que qualquer lado para o qual eu olhasse teria mais ou menos minhas opções depois do alumbramento passar.

E decidi. Serei um dragão.

Sim, eu aceito.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Intensidade

Repentinamente as coisas não escolhem acontecer: simples como o branco da luz, invadem o nosso alento e, ah, acabam com o que achamos comum.

Sim, tantas coisas, coisas tantas, não escolhemos sofrer. Mas não é necessariamente o desalento do sofrimento: sofrer de simplesmente ser o objeto da frase, sim, acontece.

Falando sobre a vida, às vezes é bom a chacoalharmos. Nossa famosa rotina casa-trabalho-casa ou, para alguns, trabalho-casa-trabalho nos impede de ver o sol brilhando lá fora.

Fora de onde? Da redoma que construímos de acordo com o tempo. A inocência de não perceber que a vida seria mais simples e mais repleta se fôssemos menos preocupados com a antiga retórica tempo-dinheiro.

A vida nos ensina, de tantas formas, a vivermos com cada vez menos para termos cada vez mais. Ou, a alguns, de vivermos com cada vez mais para sentirmos cada vez menos.

Escolher viver mais ou sentir menos. O mais ou menos pode não ser absoluto: quiçá resoluto ao que é possível vivenciar.

E o que é melhor? O conforto de viver na redoma ou o conforto de viver fora dela?

Para responder, só vivendo.
E, como já disse, viver é intransitivo.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Love & Life

What else can I write? There are no words for something that can only, for now, be called an attempt. Hence there are some special ones.

We cannot be blamed for trying something; we are the only ones to blame ourselves: perhaps for being bold. We perceive reality changing over time and the best feature of doing so is to be bolder.

The bolder, the more of a shoulder we resemble: the one they call reliance. Ubiquitous and whatnot, I urge to say I love you. There are no other possibilities! And nothing has been shown.

In this light I rely on for there are no other signs other than, as I said, possibilities. The bolder, the higher the ante! It's not love that is a game, for it must be sincere; but 'tis life. We always play with our lives, even when saying we play with people: do not believe them! We are only able to play with and for ourselves.

There is no believer if there's nothing to believe in; but also that's not a game: we see what we want, truth be it or not. I do not know about tomorrow, but I long for you.

Love is also a game we don't know we already were in. In that we cannot expect the rules to be straight, nor their whereabouts: it is like playing blindfolded. And there is the major rule: everything has a potential to be unknown. The better and the worst of them all!

There are people that like to be in danger, and the others: where would joy be if there aren't any dangers to play with? :)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Consciência

Ela é aquela pausa que acontece ao exclamarmos "nasceu!" - corridos dois segundinhos entendemos a essência do momento. Daí a lembrança distorce e o aprendizado corrói. O que conhecemos, claro: conhecer de verdade é não se assustar com o desconhecido. Nisso muito devemos às crianças.

Definimos ao olhar para o horizonte a esmo, sem preocupações: sem pessoas, dinheiro, metais, quaisquer coisas que sejam. Sem pensar, olhamos para o mundo quase desnudo. É quase porque os olhos só captam uma fração do que deve ser olhado; os ouvidos não escutam tudo, et cetera. Nem a caneta diz tudo: você entende o que quero dizer?

Você diz desconhecer grande parte das coisas: isso é bom em certa dimensão! Estará sem os famigerados preconceitos. Terá talvez medo, mas quem não tem um pouquinho? Diz que ainda não sabe o fardo que carrega, e é fato! Ele muda a toda hora. Quem não muda e tem de aceitar que o filho agora sabe andar é você! E a luz da alma dá uma luz, a luz da sombra assombra e a sombra da luz eu talvez não veja: vamos brindar porque devemos esquecer a sombra da alma! Ela, sim, é a penumbra!

Temos tantas escolhas! Ah, a livre tentação de termos tudo! Ah, a severa pena de fazê-lo! Por que se sentir moribundo ao escolher tudo, vagabundo ao não escolher nada e só bundo ao escolher uma coisa? Ébrios, só a bruma para entender vocês... E onde entra a consciência aí? Ora, aí onde entra a virtude! Mas e se não entenderem nossa virtude? Aí, sim, é uma pergunta!

E a pergunta de verdade é a que sempre permanece. Não há graça em ter resposta para tudo, mas também não em criar pergunta para tudo. Ou, pior, relembrar quais são as perguntas: viver é intransitivo! Já viu farol antes de nascer?

Daí falam em planejar-se pra consertar-se para conceber-se para viver-se! Mas se viver é intransitivo, o que tem de mais nisso? É, tem razão, tem demais! Ou se vive ou se planeja viver. Hoje ninguém realmente vive, mas não faz mal sonhar ou tentar! Pode ser que a tentativa seja realmente o viver. Planejar e viver, quanta contradição! E não é maledicência: quando vivemos, somos quem devemos ser. É como beber: nos convencemos facilmente!

Vamos abrir a janela do quarto. Mas tomando sorvete - sem que ele derreta. Pela janela veremos as crianças brincar, o sol nascer e a lua a niná-lo. O breu do quarto sem sol é que derrete a alma. E o creme do sorvete derramado não volta mais: só as formigas vão querer.

"dorsum ludum fero tui sceleris" (Carl Orff - O Fortuna)