Pensar Hoje - retratos do agora

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Um café

Por favor, sim, descafeinado. É que é como hoje preciso me sentir. Desapegado à própria essência. Estranho a mim mesmo. Não sei o que faço aqui, em pé, à entrada da cafeteria. Agora as razões estão, a mim, veladas – e hei de descobri-las!

Não há razão.

Em terreno tão definido, resoluto, é impossível encontrar respostas dentro de nós próprios. É mesmo? Hoje, o termo, é inexistente. Enquanto o café esfria, sinto a espuma arrefecer e a ganhar tom. Sem razão para em qualquer coisa pensar, tomo ele – sim, simplesmente tomo –, este agora sem parte de seu ser. Não tem hoje.

E o que existe de tão velado?

Deve, no café, existir um pouquinho de mim, pedi ele com bastante carinho. Quem o fez me conhece, sabe do que gosto. E é um dia especial, pois sempre gosto do puro. Do revelado. O aventureiro, até meio ácido de seu humor, também sensível. Tem um pouquinho disso nos meus olhos, não tem?

Ele é algo pessoal.

Nesse descobrimento de nós próprios, refletimos nosso cerne, ele (o descobrimento) é parte integrante da percepção, da dádiva de sabermos que somos parte do que tomamos e também tomamos parte do que somos. Exercitar a tarefa de apreciar nossa essência, defini-la com uma única cor e todos os tons que couberem na memória.

O pessoal é intransferível.

Às vezes as coisas são simplesmente nossas. E percebemos que não dá, não dá para repassar tudo aos outros. Assim acontece com o gosto que sentimos. Esperamos que seja um pouquinho de nós e um montão dos outros, até porque é bom saber como são os outros. Não sei como é você, talvez menos quanto sabe como sou eu.

Mas só eu sei como escrevo na borra.

Às vezes alguém resolve ler uma borra de café e dizer algumas coisas sobre nós. E elas estão até certas! Acertam com honra, valor, até orgulho. Mas o importante é outro, outro, o outro. Segredo esse ninguém tasca, pode ser meu motivo para viver. Se alguém achar uma pista, vai saber – não, de verdade, não tem segredo. Dessa janela ninguém vê o sol.

É que ninguém sabe como é a gente que entra pela porta de um café.

Sai da boca da razão que uns são e uns não são. Só que não tem boca para dizer como são, menos ainda os porquês de serem. Ou não serem, na verdade tanto faz. Para mim, tudo é um e, para o outro, um é tudo. E o que acaba importando é se o outro vai dizer oi ou não.

Oi, um café puro, por favor!

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Os homens não conhecem seus céus

Os homens não conhecem seus céus

Não é verdade. Sim, alguns conhecem o céu. Também aquele azul, o que contemplamos quando no parque – não quando corremos – ou quando prestando a rara atenção na janela. Os homens são solteiros, eu digo. Não casam-se com o que eles já, sim, sabem a que se refere a felicidade. É estranha essa coisa de felicidade, parece que estamos numa peça de teatro, que temos de rir a toda hora.

Espero ter lucidez agora. A reconhecedora do poço no qual nos encontramos: o da solidão, da ilusão do que é bom e ruim, das coisas que nós próprios fizemos conosco. Não tem nexo criar a noção de felicidade se nascemos chorando não-sei-o-porquê. Tinha mais alguma coisa azul, mas o tempo não deixou escrever. E não importa, algumas precisamos aprender sozinhos, assim como fizemos logo ao nascer.

Todos querem ser fortes, lúcidos, amorosos, calmos – querem. Descobri que eu também. Não sei dizer qual é o caminho para atingir o que queremos. Ninguém decide sem querer, mesmo que não tenha razão: é preciso querer. Mas tudo o que queria era deixar o sol entrar pela janela ou sair da casa para não precisar da dita janela. Meu pequeno universo começa quando vou dormir. Só assim sinto o que faria se tivesse decidido tudo na vida.

É para decidir bem aos pouquinhos. E então vamos dizer “Era uma vez”. Eu ainda não comecei. E quem decide resolve enxergar o mundo diferente: “Eu já fiz”. Mas sofre o amargor, começa a ter menos coisas a fazer na vida, a deixar de ser criancinha. A não dividir seus hábitos, não revelar o que sente. E dá calafrio nas costas pensar que alguém vai deixar de ser criança, que vai ser iniciado em algo que não sabe o que é.

Daí o cândido passa a ser responsável, respeitado, retorcido. Dizem que são mais fortes, mais felizes, mas não é, não é. É a amargura que se acumula para eles rirem da próxima piada, qualquer coisa vai ter graça se não for desgraça. E não terão muito a fazer a não ser continuar vivendo. E por dentro a alma só ri se ela quiser.

Queria tanto saber por um dia como é. Mas não dá, não dá. Se acontecer, vai me tomar o riso e me tornar irriso. Irriso de irrisório, ilusório. E não tem volta, a experiência preenche todas as suas lacunas. Quando temos muitas delas conseguimos ouvir e desouvir porque tudo por elas passa. Quando não, tudo entope a alma como o coração magoado. E esse mata, mesmo que não literalmente.

E a decisão é clara como o céu, mas outro céu. Mais outro. Esse é o de dentro, o que enxergamos quando ficamos cegos, isolados do mundo. Tem coisas que são apenas nós. E esse nós são eu e eu. As que entram pelas frestas das janelas, que nos cegam, não deixam que vejamos nada mais porque essa, sim, é uma certeza: o mundo dos átomos é muito pequeno para isso, são só cinzas. Ou são cinzas, mas não essas que conhecemos. As que invisivelmente saem quando queimamos alguém e enxergamos sua vontade de viver no ar. A essência, dizem. São só cinzas, também, porque muitas vezes não nos importamos conosco.

E ao transferirmos coisas para a responsabilidade de outros é que erramos. Não, não, não, eles não são responsáveis por nós: nós é que devemos tomar cuidado do eu. E a isso não adianta bater a cauda, queimar o jardim. Esse jardim ninguém queima: ele só enfeia ou embonitece. Seu pensamento não arredará pé e, sim, ele é quem está certo! Quando descobrimos tais certezas, o jardim cheira bem, novamente cândido e incólume – protegido da cólera que plantamos ao ver o jardim dos outros quando precisamos mesmo é cuidar do nosso.

O mais estranho disso tudo é descobrir que o céu não está no nosso jardim nem no dos outros. Todos temos o direito de ver a paisagem, igualzinho ao do vizinho: ninguém pode ter um pedaço maior do céu que o outro. Acontece que alguns aproveitam-no melhor que os outros. Há quem fique feliz na clausura! E eu pensando em janelas. Há os que dormem em quartos escuros, movediços, até traiçoeiros. E, ainda assim, dizem ser donos de quinhões no céu. Como pode? Ah, é: não precisa explicar.

Eu o amava, o céu. Porque ele não precisa de passaporte, dinheiro, sequer sonho! Era só estar lá e andar. A cada vez que eu entendia algo mais aqui, meus passos nos céus se alargavam. Até que eu resolvi livrar-me de tudo aquilo que não precisava ou não queria de verdade mas os outros insistiam. Então eu passei a voar, passar por nuvens, espiar nas casas – sim, lá as casas são perfeitas – e encontrei um espelho. Nele eu era outra pessoa. Virei um dragão!

Um dragão. O que as pessoas dizem ser sujo, malcriado, o que solta fogo e assusta as crianças em seus sonhos. Mas como assim, sempre gostei de crianças! E comecei a cair quando pensei nos outros, ah, os outros. E esquecia como era voar. Voltei ao estado estupefato para não me esborrachar. Parei numa pedra para refletir. Fria, ela. E tinha limo verde, quase escorregava. E ali tive de decidir se voava para sempre ou continuava pela terra.

Sempre soube que os passos largos me levariam a uma dura decisão. E hoje chegou. Não posso andar e voar; correr cansa. É a responsabilidade, agora, de saber se serei criança ou “gente grande”, se vou voar ou andar, de tudo. Sinto que sentirei falta da outra opção. Andar não dói, mas cheira mal. Vejo o mal. Cresce, aparece, é café derramado. Voar é puro, cândido, leve, mas dói. E não sentimos cheiro, ele fica para trás. E ao não cheirar não crescemos, continuamos crianças.

E o tema entra e sai de minha cabeça a cada segundo, é luz na peneira que faz suco de laranja e vodca que queima a garganta. Mais café, eu pedia. Resolvi que não iria pensar até os próximos cinco segundos, a resposta viria. Também resolvi roer unha feito criança, ainda na ansiedade de crescer para saber se iria voar ou andar. Respirei parcamente, até esbugalhei os olhos e fiz caretas com a boca para clamar alguma resposta do cérebro, porque eu já sabia o que o coração queria.

Sem piscar os olhos minhas mãos tremeram e eu esqueci quem era. O adágio ribombava na minha cabeça porque agora seria o momento de virar as costas para metade de minha vida e decidir se seria um transeunte ou um avião aos olhos de quem passa o tempo contemplando a paisagem. Se teria alegrias comuns ou mitológicas com hábitos coletivos ou solitários ou qualquer coisa que o valha. Percebi que qualquer lado para o qual eu olhasse teria mais ou menos minhas opções depois do alumbramento passar.

E decidi. Serei um dragão.

Sim, eu aceito.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Intensidade

Repentinamente as coisas não escolhem acontecer: simples como o branco da luz, invadem o nosso alento e, ah, acabam com o que achamos comum.

Sim, tantas coisas, coisas tantas, não escolhemos sofrer. Mas não é necessariamente o desalento do sofrimento: sofrer de simplesmente ser o objeto da frase, sim, acontece.

Falando sobre a vida, às vezes é bom a chacoalharmos. Nossa famosa rotina casa-trabalho-casa ou, para alguns, trabalho-casa-trabalho nos impede de ver o sol brilhando lá fora.

Fora de onde? Da redoma que construímos de acordo com o tempo. A inocência de não perceber que a vida seria mais simples e mais repleta se fôssemos menos preocupados com a antiga retórica tempo-dinheiro.

A vida nos ensina, de tantas formas, a vivermos com cada vez menos para termos cada vez mais. Ou, a alguns, de vivermos com cada vez mais para sentirmos cada vez menos.

Escolher viver mais ou sentir menos. O mais ou menos pode não ser absoluto: quiçá resoluto ao que é possível vivenciar.

E o que é melhor? O conforto de viver na redoma ou o conforto de viver fora dela?

Para responder, só vivendo.
E, como já disse, viver é intransitivo.