Por favor, sim, descafeinado. É que é como hoje preciso me sentir. Desapegado à própria essência. Estranho a mim mesmo. Não sei o que faço aqui, em pé, à entrada da cafeteria. Agora as razões estão, a mim, veladas – e hei de descobri-las!
Não há razão.
Em terreno tão definido, resoluto, é impossível encontrar respostas dentro de nós próprios. É mesmo? Hoje, o termo, é inexistente. Enquanto o café esfria, sinto a espuma arrefecer e a ganhar tom. Sem razão para em qualquer coisa pensar, tomo ele – sim, simplesmente tomo –, este agora sem parte de seu ser. Não tem hoje.
E o que existe de tão velado?
Deve, no café, existir um pouquinho de mim, pedi ele com bastante carinho. Quem o fez me conhece, sabe do que gosto. E é um dia especial, pois sempre gosto do puro. Do revelado. O aventureiro, até meio ácido de seu humor, também sensível. Tem um pouquinho disso nos meus olhos, não tem?
Ele é algo pessoal.
Nesse descobrimento de nós próprios, refletimos nosso cerne, ele (o descobrimento) é parte integrante da percepção, da dádiva de sabermos que somos parte do que tomamos e também tomamos parte do que somos. Exercitar a tarefa de apreciar nossa essência, defini-la com uma única cor e todos os tons que couberem na memória.
O pessoal é intransferível.
Às vezes as coisas são simplesmente nossas. E percebemos que não dá, não dá para repassar tudo aos outros. Assim acontece com o gosto que sentimos. Esperamos que seja um pouquinho de nós e um montão dos outros, até porque é bom saber como são os outros. Não sei como é você, talvez menos quanto sabe como sou eu.
Mas só eu sei como escrevo na borra.
Às vezes alguém resolve ler uma borra de café e dizer algumas coisas sobre nós. E elas estão até certas! Acertam com honra, valor, até orgulho. Mas o importante é outro, outro, o outro. Segredo esse ninguém tasca, pode ser meu motivo para viver. Se alguém achar uma pista, vai saber – não, de verdade, não tem segredo. Dessa janela ninguém vê o sol.
É que ninguém sabe como é a gente que entra pela porta de um café.
Sai da boca da razão que uns são e uns não são. Só que não tem boca para dizer como são, menos ainda os porquês de serem. Ou não serem, na verdade tanto faz. Para mim, tudo é um e, para o outro, um é tudo. E o que acaba importando é se o outro vai dizer oi ou não.
Oi, um café puro, por favor!
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Um café
domingo, 10 de fevereiro de 2008
Os homens não conhecem seus céus
Os homens não conhecem seus céus
Não é verdade. Sim, alguns conhecem o céu. Também aquele azul, o que contemplamos quando no parque – não quando corremos – ou quando prestando a rara atenção na janela. Os homens são solteiros, eu digo. Não casam-se com o que eles já, sim, sabem a que se refere a felicidade. É estranha essa coisa de felicidade, parece que estamos numa peça de teatro, que temos de rir a toda hora.
Espero ter lucidez agora. A reconhecedora do poço no qual nos encontramos: o da solidão, da ilusão do que é bom e ruim, das coisas que nós próprios fizemos conosco. Não tem nexo criar a noção de felicidade se nascemos chorando não-sei-o-porquê. Tinha mais alguma coisa azul, mas o tempo não deixou escrever. E não importa, algumas precisamos aprender sozinhos, assim como fizemos logo ao nascer.
Todos querem ser fortes, lúcidos, amorosos, calmos – querem. Descobri que eu também. Não sei dizer qual é o caminho para atingir o que queremos. Ninguém decide sem querer, mesmo que não tenha razão: é preciso querer. Mas tudo o que queria era deixar o sol entrar pela janela ou sair da casa para não precisar da dita janela. Meu pequeno universo começa quando vou dormir. Só assim sinto o que faria se tivesse decidido tudo na vida.
É para decidir bem aos pouquinhos. E então vamos dizer “Era uma vez”. Eu ainda não comecei. E quem decide resolve enxergar o mundo diferente: “Eu já fiz”. Mas sofre o amargor, começa a ter menos coisas a fazer na vida, a deixar de ser criancinha. A não dividir seus hábitos, não revelar o que sente. E dá calafrio nas costas pensar que alguém vai deixar de ser criança, que vai ser iniciado em algo que não sabe o que é.
Daí o cândido passa a ser responsável, respeitado, retorcido. Dizem que são mais fortes, mais felizes, mas não é, não é. É a amargura que se acumula para eles rirem da próxima piada, qualquer coisa vai ter graça se não for desgraça. E não terão muito a fazer a não ser continuar vivendo. E por dentro a alma só ri se ela quiser.
Queria tanto saber por um dia como é. Mas não dá, não dá. Se acontecer, vai me tomar o riso e me tornar irriso. Irriso de irrisório, ilusório. E não tem volta, a experiência preenche todas as suas lacunas. Quando temos muitas delas conseguimos ouvir e desouvir porque tudo por elas passa. Quando não, tudo entope a alma como o coração magoado. E esse mata, mesmo que não literalmente.
E a decisão é clara como o céu, mas outro céu. Mais outro. Esse é o de dentro, o que enxergamos quando ficamos cegos, isolados do mundo. Tem coisas que são apenas nós. E esse nós são eu e eu. As que entram pelas frestas das janelas, que nos cegam, não deixam que vejamos nada mais porque essa, sim, é uma certeza: o mundo dos átomos é muito pequeno para isso, são só cinzas. Ou são cinzas, mas não essas que conhecemos. As que invisivelmente saem quando queimamos alguém e enxergamos sua vontade de viver no ar. A essência, dizem. São só cinzas, também, porque muitas vezes não nos importamos conosco.
E ao transferirmos coisas para a responsabilidade de outros é que erramos. Não, não, não, eles não são responsáveis por nós: nós é que devemos tomar cuidado do eu. E a isso não adianta bater a cauda, queimar o jardim. Esse jardim ninguém queima: ele só enfeia ou embonitece. Seu pensamento não arredará pé e, sim, ele é quem está certo! Quando descobrimos tais certezas, o jardim cheira bem, novamente cândido e incólume – protegido da cólera que plantamos ao ver o jardim dos outros quando precisamos mesmo é cuidar do nosso.
O mais estranho disso tudo é descobrir que o céu não está no nosso jardim nem no dos outros. Todos temos o direito de ver a paisagem, igualzinho ao do vizinho: ninguém pode ter um pedaço maior do céu que o outro. Acontece que alguns aproveitam-no melhor que os outros. Há quem fique feliz na clausura! E eu pensando em janelas. Há os que dormem em quartos escuros, movediços, até traiçoeiros. E, ainda assim, dizem ser donos de quinhões no céu. Como pode? Ah, é: não precisa explicar.
Eu o amava, o céu. Porque ele não precisa de passaporte, dinheiro, sequer sonho! Era só estar lá e andar. A cada vez que eu entendia algo mais aqui, meus passos nos céus se alargavam. Até que eu resolvi livrar-me de tudo aquilo que não precisava ou não queria de verdade mas os outros insistiam. Então eu passei a voar, passar por nuvens, espiar nas casas – sim, lá as casas são perfeitas – e encontrei um espelho. Nele eu era outra pessoa. Virei um dragão!
Um dragão. O que as pessoas dizem ser sujo, malcriado, o que solta fogo e assusta as crianças em seus sonhos. Mas como assim, sempre gostei de crianças! E comecei a cair quando pensei nos outros, ah, os outros. E esquecia como era voar. Voltei ao estado estupefato para não me esborrachar. Parei numa pedra para refletir. Fria, ela. E tinha limo verde, quase escorregava. E ali tive de decidir se voava para sempre ou continuava pela terra.
Sempre soube que os passos largos me levariam a uma dura decisão. E hoje chegou. Não posso andar e voar; correr cansa. É a responsabilidade, agora, de saber se serei criança ou “gente grande”, se vou voar ou andar, de tudo. Sinto que sentirei falta da outra opção. Andar não dói, mas cheira mal. Vejo o mal. Cresce, aparece, é café derramado. Voar é puro, cândido, leve, mas dói. E não sentimos cheiro, ele fica para trás. E ao não cheirar não crescemos, continuamos crianças.
E o tema entra e sai de minha cabeça a cada segundo, é luz na peneira que faz suco de laranja e vodca que queima a garganta. Mais café, eu pedia. Resolvi que não iria pensar até os próximos cinco segundos, a resposta viria. Também resolvi roer unha feito criança, ainda na ansiedade de crescer para saber se iria voar ou andar. Respirei parcamente, até esbugalhei os olhos e fiz caretas com a boca para clamar alguma resposta do cérebro, porque eu já sabia o que o coração queria.
Sem piscar os olhos minhas mãos tremeram e eu esqueci quem era. O adágio ribombava na minha cabeça porque agora seria o momento de virar as costas para metade de minha vida e decidir se seria um transeunte ou um avião aos olhos de quem passa o tempo contemplando a paisagem. Se teria alegrias comuns ou mitológicas com hábitos coletivos ou solitários ou qualquer coisa que o valha. Percebi que qualquer lado para o qual eu olhasse teria mais ou menos minhas opções depois do alumbramento passar.
E decidi. Serei um dragão.
Sim, eu aceito.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Intensidade
Repentinamente as coisas não escolhem acontecer: simples como o branco da luz, invadem o nosso alento e, ah, acabam com o que achamos comum.
Sim, tantas coisas, coisas tantas, não escolhemos sofrer. Mas não é necessariamente o desalento do sofrimento: sofrer de simplesmente ser o objeto da frase, sim, acontece.
Falando sobre a vida, às vezes é bom a chacoalharmos. Nossa famosa rotina casa-trabalho-casa ou, para alguns, trabalho-casa-trabalho nos impede de ver o sol brilhando lá fora.
Fora de onde? Da redoma que construímos de acordo com o tempo. A inocência de não perceber que a vida seria mais simples e mais repleta se fôssemos menos preocupados com a antiga retórica tempo-dinheiro.
A vida nos ensina, de tantas formas, a vivermos com cada vez menos para termos cada vez mais. Ou, a alguns, de vivermos com cada vez mais para sentirmos cada vez menos.
Escolher viver mais ou sentir menos. O mais ou menos pode não ser absoluto: quiçá resoluto ao que é possível vivenciar.
E o que é melhor? O conforto de viver na redoma ou o conforto de viver fora dela?
Para responder, só vivendo.
E, como já disse, viver é intransitivo.