Pensar Hoje - retratos do agora

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O cantil

Duas almas desalmadas nem aos céus podem recorrer; suas barracas também não são tão símbolos de segurança, tampouco o céu que teria em enganá-los. O peso é parco, a idéia de realidade já inexiste. Não há nada para buscar na barraca, só o som zunido do deserto consegue entrar em seus ouvidos, até nas almas desalmadas.

O mapa? Ainda nada diz. Consertar o carro só dá a esperança de encher o cantil mais uma vez. A direção só é decidida, não que seja certa. O passo parco só garante um erro menor: não se sabe onde estará o novo cantil. Mas o binóculo diz mais! Pena que ainda estamos longe.

Mas o cantil d'agora é importante, é importante. Tenhamos determinação, amanhã poderá ser melhor. É por lá, diz ele! E seguiremos, vamos seguir, não podemos perder mais tempo. Ou, mesmo que percamos, façamos algo para não pararmos. E não há discussão nessas horas: um está tão perdido quanto o outro e nenhum mapa diz nada, até as estrelas mentem para nós.

A escravatura ainda não acabou, digo. Temos duas barracas para nós dois, mas parece que só uma existe. Uma é igualzinha à outra, mas o sono em ambas é ruim, ruim de uma forma diferente. E ah, a do escravo só é mais iluminada porque ele precisa trabalhar.

Um mundo está longe, mas o nosso é menor: busquemos! E eu quero, também, o cantil. Mas calma, calma. Deverá passar tudo isso, espero. E quando isso tudo passar, deveremos rir do que aconteceu, ou então nos separarmos e irmos cada um para seu caminho. Mas de tanto tempo longe, não lembro qual é o caminho. Não temos mais história, qual o sentido?

Não quero, não quero matar! Sou ainda honesto, mesmo que o capataz sem causa continue aqui. Vamos seguindo. Mas o capataz não perdoa a nada. A saída não é justa, ela só servirá para ele. E os reprimidos? Que continuem escravos, ele acha. Se não podemos consertar o que tivemos, joguemo-nos fora. Sigamos, sigamos, sigamos a algo que não sabemos o que é: o cantil é importante.

Ele me deixou sem água. Fenecerá ele! E não é por vingança, não. É que ele se acostumou com água, a ele vai faltar, já estou acostumado sem: o corpo a tudo se adapta quando a alma é forte. E a mais um pesadelo não suportarei, se ele pensa que é esperto, ignorância plena: vou tomar um restinho de água aqui.

... e ele ainda consegue achar as estrelas bonitas! Não, não suporto. E agora a água acabou até para ele. Quero ver qual lápide o acolherá, porque agora será só ele a procurar sentido na vida! Porque a minha serão os grãos de areia que já correm pelas minhas mãos...

... baseado na peça O cantil do grupo Teatro Máquina no Centro Cultural São Paulo - texto escrito em 28/11/2008.